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Outro Lado Do Mundo’

Diário de Viagem de Lilly Baniwa

Arquivo pessoal, comunidade Nazaré 2020.

Meu nome no meu território é Da’apa, e sou conhecida como Lilly Baniwa pelos meus amigos e por onde atuo como artista. Sou Indígena nascida na comunidade Nazaré do Rio Médio Içana, como é conhecida hoje, localizada no noroeste amazônico. Antigamente o nome da minha aldeia era Kamokodemi, que quer dizer “o lugar com muito muco”.  Dizem que antigamente, Amaro, a primeira mulher baniwa, estava sendo perseguida  e acusada de traição por Napirikonai (primeiros homens baniwa). O Napirikoli, teve a ideia de criar uma grande quantidade  de muco para que ela fosse engolida e morta por aquele muco. Toda margem do rio Içana conta a história de Amaro e cada lugar é nomeado segundo acontecimentos daquele tempo. Porém, com a catequização e evangelização os nomes também sofreram alterações… 

Continuação…

Vinte anos atrás algo muito mais forte me fez sair da minha comunidade aos 13 anos de idade, sempre foi uma menina muito curiosa em tudo, como sempre digo “os desafios me motiva realmente persistir naquele que eu quero” e dessa vez foi o “Portugues” (risos). 

Minha mãe sempre me incentivou nas coisas, talvez tenha a ver com o meu nascimento. No meu povo, os pais recebem sinais de habilidades de seus filhos no ato de seu nascimento. Meu pai era um dos caciques da comunidade, sempre digo que eu era a última esperança do meu pai. Sou sexta filha dos meus pais, e ele estava ansioso esperando que o bebê que nascesse fosse um menino. Ele e a minha mãe já tinham tido cinco filhas meninas, e ele acreditava que a sexta sim seria um menino, que levaria a continuação da linhagem dele. Quando o grande dia chegou mais uma vez era menina, eu.  

Minha Mãe, eu, meu sobrinho e meu cunhado Viagem de 2015 – Rio Içana.

 

Minha Mãe disse que antes de descobrir que estava grávida pela 6ª vez, ela teve um sonho com meu primo, meu único primo homem que havia falecido a pouco tempo “Tia, eu trouxe pra você, pra ficar no meu lugar” deu o bebê pra minha Mãe, mas ela disse viu vários outros bebês no berço, recusou o que meu primo tinha trazido, e foi pegar uma bebê que estava no berço “Era uma menina linda, cheinha linda! peguei ela no meu colo.” Ela acredita esse foi o dia que ela escolheu ter uma menina mais uma vez. 

Infelizmente, aos 3 ou 4 anos perdi meu pai. Então, quero deixar aqui registrado que minha mãe D. Anna foi uma grande mulher Mãe e Pai na minha infância e em toda minha vida, como digo no meu mais recente trabalho SER-HUMA-NÓS ela é “baixinha e gigante!” 

Quando fiquei grandinha comecei a ir pra escola, me recordo muito bem da escola nova da comunidade nazaré do Rio Içana inaugurada por Prefeito Quirino de São Gabriel da Cachoeira, AM. Me recordo muito bem deste dia de festa com muita comida, dança e presentes para o prefeito, tudo por uma escola nova na comunidade. 

 O meu Professor chamava-se Antenor, ele falava muito bem na frente de todos com muita elegância e cabelo bem penteado e todos gostavam e admiravam ele.  Quando ele falava, dizia pra mim mesmo “Eu queria falar e ler que nem ele”. Mas eu estava nos primeiros anos de escolinha e eu não sabia ler. Minha mãe dizia que aprenderia, só tinha que estudar e prestar muita atenção na escola, mas o problema é que as aulas eram em português, não entendia nada. 

Quando chegava da aula eu pegava meu único livro que eu tinha, a bíblia. Eu prestava muito atenção na igreja também, porque tinha algumas pessoas que liam a bíblia em português. Então, procurava os versos que foram lidos para usar de exemplo para formar palavras e repetir pronúncias de algumas palavras. 

Eu queria aprender rápido! Mas estava muito difícil, e na igreja eles falavam que Deus ajudava quem pedia ajuda na oração. Eu fechava meus olhos e: “Deus, me ajuda aprender a ler, eu juro que vou ler toda bíblia” eu dizia, (risos). Sim, cumpri minha promessa.

Um dia, já um pouco grandinha, terminando minha 4ª série na comunidade, tomei coragem para ir estudar em São Gabriel da Cachoeira. Outro dia conto melhor essa história (Risos).  Eu já entendia mais ou menos, mas as palavras quase não saíam, lembro que quando comecei estudar em São Gabriel eu ficava treinando sim e não antes da aula no corredor do Colégio Dom João Marchesi, por que eu falava não como “nó” (risos), descobri que falava errado por que meus colegas riam quando eu falava, uns ficavam até rindo e fazendo piada. 

No meu primeiro seminário no colégio, eu travei, eu disse a professora que não conseguia falar, me olhou bem feio e me disse: “Então, por que está aqui se não sabe falar!” como já podem imaginar, sim fui reprovada. 

Então, procurava ouvir como eles falavam para ficar repetindo sozinha. Eu acho que SIM E NÃO são duas palavras suficientes para sobreviver num lugar onde ninguém fala sua língua, se te perguntam sobre uma certa coisa você só responde sim ou não. Se as pessoas te perguntarem se você aceita água, você responde sim ou não… Eu sobrevivi aquele ano. 

Quando decidi ir estudar em São Gabriel da Cachoeira, minha mãe me chamou pra conversar “Minha filha estuda, mas vou te pedir uma única coisa, eu não quero que você fique que nem as outras (irmãs), eu quero que em todas as férias você volta pra nossa comunidade comigo. Então, todas as férias eu venho te buscar., tá bom?” Eu disse: Claro mãe, eu quero ir todas as férias, te ajudar lá. Ela fez isso durante meu ensino fundamental e ensino médio, acredito que ela teria feito até minha graduação se tivesse condições financeiras, mas nunca deixei de voltar!  

 Hoje entendo o porquê. Ela queria que eu entendesse como é importante sempre se reconectar com o nosso território, com nossa ancestralidade e “nosso lugar de pertencimento”, que nos fortalece na caminhada longe de nossa realidade. 

Voltar para a aldeia é respirar. Sinto que volto pra aldeia como uma bateria descarregada, que logo nas primeiras horas de viagem de canoa me recarrega. Gosto quando minha Mãe vai contando as histórias de nossos ancestrais Amaro, Ñapirikoli… decorrer do Rio Negro e Rio Içana, ela faz isso desde que eu era bem pequena. 

Arquivo pessoal 2015

Tudo isso, me ajudou a continuar sonhando, as energia, o tempo, as pessoas da aldeia; “Da’apa chegouuu” “Beeeee Da’apaa noadaa” (eee Da’apa) “Wada’apani noada rhoaha yookaliwa” (Nossa Da’apa chegou”). Tudo me fazia sentir que ele estava confiando em mim, “Quando você vai voltar morar com a gente” “Falta pouco?” “A gente está te esperando aqui”. “Quando você quiser a gente limpa uma parte da terra, a gente faz sua casa”. Tudo me deixava fortalecida e pronta para voltar para mais um desafio de semestre na escola e Universidade, e me fazia sentir que esse sonho não é somente a minha, mas de toda a aldeia que me recebia com todo aquele carinho e boas energias.

Minha irmã, meu sobrinho e minha Mãe e Eu. Arquivo pessoal 2015

Obrigada!

VERSÃO TRADUZIDA EM BANIWA

Comunidade Nazaré do Rio Içana 2020 

Noipitana nodzakale riko Da’apa, Lilly Baniwa nanhekanoa nhaaha nokitsienape ayaaha nodeenhi waka liko tsakha. Nhoa medzenidaro ayaaha Kamokodemi, Nazaré do Rio Içana lipitana pandza, noroeste amazônico liko.

Oopipiattoa pida lhiehe Ñapirikoli liomakadanako linoaka rhoaha Amaro, lidzekata hanipaa!  Limoko, hoewakaneni maliomekaro rhoa, khette kamokodemika lipitana lhie nodzakale.

Phiome liakawa lhiehe linomali lhiehe Iniali (Rio Içana), nenikaa roapoapemi, ronakoapaana nako rhoa Amaro nhatsa naaha Ñapirikoli, Kowai Phiome naaha Wawherinaipe oopi.

Metsa nakakadzamiwaa nhaaha Ialanaminai (hiepakape), napoadzataka phiome nepitana naaha wadzakale nhatsakha nhaaha kaminalidape peri, nanakoapanaa nako peri nakaaha wawherinaipei.

20 anoena nonokadzami nodzakale ioodza, 13 ano piaka nolhioka. Ñepetti kadanakottoa nhoa kadzodalitsa nomadeka nhimaka nodzadawa ianheketti Professornai inai nhette pedalhiape inai tsakha. Hirapitinakali ikadaphaa noma phaa dee noanheka, nomapha nokadzekawa! Nheette lhiawali noma phia noanheka nokakotaka ialanawinai Iakoliko (Português).

Rhoa Nhodoa kadzodalitsa rokaiteka nhoa, “Pikadzekatakawa!” Paolipee lima pandzeehe rokapaka kredzakhoa kanhoa ou roanheka koameka medzenikadanako nhoa. Ima whaa Baniwanai whanheka koame watsa weenipe medzenikadanakoni, (Kadzekadali kani koadadanako). Lhiehe Nhoniri mikoiri idenhi kaita piakani comunidade nako (Cacique/capitão), nokaidede: “Nhoa piketemidaro liapakatha lienipeka tsiaali” ima nhoa 6 xopaa kaa lhinipeka inaro kaa. Khette kattima katha pidaa liapaka medzenika piketemidali lhienipe “Tsiani” likadzowape oo likitindawa. Medzenika danako nhoa nakapaka inaro tsenka, Nhoa.

Nhodoa ikaite liphedzattoa roanheka kewedanka rhoa, hitaponika nokitsinimikoiri inai “ Tiaa, piriowa, nodeka piriohe, yemakawape noapowamiriko” lidezaka pida ñepetti tsialinda rolhio, metsakaron pidekaa ripakani likhoetteni, ima roakapaka pidaa apada ñepetti inaroda matsiadaro makadaro kepedaro. “nhipa khapanika nhoa nokodaliko” rhoako. Khette roakodee: “Noenipee noniwanada piephia nhitaponiriko.”

Nolhio kadanakopia 3 oo 4 ano maliome piaa nhoniri mikoiri, Nooma tsakha nodanaka ayaaha; khedzaakodaro ka rhoaha Nhodoa, ima rotawiñakaa nhoa matsia nheette nhatsaka nhaaha nopheronaipe, rhoawakatsa!  Rotawinhawa phiome wanhekaatsa weemaka hekoapiriko matsiatsa. Hanhipadali rokale rhoa Nhodoa, nokaitekapidzo ayaaha nodenikale SER-HUMA-NÓS liko.

Makadarhoa! Kadanako pia nhoa nokenhoaka nokadzekatakawa Escola nodzakale liko Nazaré lidzekataadehe Prefeito Quirino de São Gabriel da Cachoeira, AM. Noapinhetatsa matsia koamephiaka Inaogoração; Inhawadatti, narapaka, nheete naaka paniatti lima prefeito irhio.

Lipitana phia lhiehe no Professorni Antenor, lhietaka matsia, litikole, matsia likakotaka nekadanako koaka roheweriko nawiki. Nokapade lirhio, “Nokakota mitha likadzo” Ima lhiawali kaaro ttoa noanheka kakoka nhoa ialanawinai iakoliko.  Khette Nhodoa ikaitedee piapa phima matsia pikawa escola liko, pianhekaro  watsa.

Nhimade tsaka nakaiteka igreja liko Dio Ikitindataka pha pattathakadaa linai, khette nodiakadanako dewa escola likhitte nottathade Dio inai. noapadee tsaka nhima matsia koameka naleka noikawa igrejaliko.

Nheette pawali pia, nowadzaka danako  4ª serie, noakhapani piawa Hipanakole, nokadzekata kawa Colegio Dom João Machesi. Lhiawali nhimapanalii português. hirapittinaa phiome, karo kaphoa noanhe kakokanhoa matsia Ialanawi iakoliko.

Metsa kadzodalitsa nomaka nhimaka noikawa naine, ate pandza. Nokakaro pandza ayaaha: Nokakota, nodana nheette noletsaka.

Metsa liphedzattoa phiome lhiehe nokaite li, nodoa ikakotaphia noinee “Phiawa, metsa mamoadatsa pidzakale ioodza, nee tsaka pikitienapee iodzaka, pinoatsa noine férias liko kadzodalitsa.”

Pandzattoena noanheka Koadakaa rokaite phia nolhio kadzo, rihapittina panikadanakowa iakale ialanawinai idzakale riko, nheete padiakadanakoo padzakale riko matsiaka manhiaka kawa. Ima poadzakaa nemakaa watsa whaa nawikinai, nhaaha Ialanawinai. Poadza nadenikaa ñaa papedzoka pakapaka nhekakhaketsa nakalewa rekoapinako, ate nadzami lima.

Waa nawikinai katsa liaka kadzokawaa haa nakadzo, ima Dio oo wawhwrinaipe oopittoa ikadzekada wanheka weemaka hekoapiko matsia, ñaa walhioka lhiehe violência nhanheka naaha ialanawinai.

Nodiakadanako dewa matsia noanhiakade kawa, ima nodzakale rikoka nhoa, likadaa khedzako matsia nhoanhiakakawa noanhikadakowaa iakale nodzakale ioodza. Phiome lhiehe linakoapanehe wadzakale wawhe mikoiñai inako (nanhekhe) nakadaka khedzako phaa iakale kadanako paniwa. Wanhikadanako dewa Iniali riko Rio negro mamai ikaitede phiome ronako rhoa Amaro, koameka Ñapirikoli Iomaka inoaka nhoa, phiome roapowapemi Inhiali riko.

Nokakadanako  dee nodzakalemi riko, matsia nakoadataka dekaa nhoaa nhaaha nokitsienapee  noipitana liko “Da’apa. Da’apa.” “Da’pa iokakawa.” “Nodapani noa roaha.” “Nodapani noa rhoaha.”

Phiome! Ikadade kattima Nhoa, khedzako nodiaka tshenkha nokadzekatakawa.

 

Matsia!

3 comentários

  1. Alfredo Morel diz:

    Já gostei do que vi e na espera pra saber mais sobre teus passos aqui na Terra! 🍃🍂🏹

  2. Vivi Kariri diz:

    Ansiosa pelas próximas escritas!

  3. Veronica diz:

    Que linda a história! Cheia de afeto e coragem. Coragem de fazer o “grande círculo”, para fora, para longe e para o centro, para casa. Afeto pela mãe-mãe, pela mae-Amaju, pela mãe-terra.

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